Afinal, para que serve a arte?
Não é preciso conhecer muito sobre o mundo da arte para notar que ela tem o seu valor. Exposições exuberantes, museus incríveis, galerias belíssimas (e tão grandiosas que chegam a ser intimidadoras), artistas renomados e obras com valores inestimáveis.
No entanto, o que muitas pessoas se perguntam, mas nem sempre externam, é: que valor é este? Por que a arte é tão importante para o mundo? E afinal, para que serve a arte?
Segundo Botton e Armstrong em Arte como Terapia, essas e outras perguntas, de forma muito injusta e grosseira, se tornaram uma espécie de tabu. Desde o início do século XX, a nossa relação com a arte vem se enfraquecendo devido à relutância institucional em responder esse tipo de indagação.
Isso se reflete em um mundo onde cada vez mais pessoas não valorizam a arte e entendem a razão dela existir. Uma reação disso, são todas as pessoas que vão aos grandes museus do mundo ou galerias com obras renomadas e saem de lá frustrados porque não tiveram a experiência transformadora que tanto falam. Elas acabam concluindo que isso é falta de sensibilidade ou de conhecimento à arte.
É sabido dizer que o conceito de arte é abstrato. Em razão disso, entender a utilidade da arte pode variar de acordo com a cultura de cada indivíduo que, por sua vez, interfere na percepção e nas emoções que a arte suscita.
Seguindo este contexto e nos baseando na obra de Botton e Armstrong, trouxemos alguns pontos que podem esclarecer essas questões acerca da arte e sua utilidade.
E então, para quê serve a arte?
Desde o início da história da humanidade, a arte tinha o papel de registrar o comportamento, a história e atravessou o tempo sendo usada de formas diferentes, agregando, principalmente, para a compreensão, percepção e comunicação.
A arte provoca sensações, por isso é possível afirmar que, para compreender a utilidade da arte é preciso ir além do valor estético e considerar o significado particular. Ou seja, isso pode variar de acordo com cada pessoa, tanto para o artista, quanto para quem analisa a obra.
Seja como forma de expressão artística ou compreensão do mundo à nossa volta, a arte ganhou a função de desafiar seu espectador.
Segundo Botton e Armstrong, ela pode ser entendida como instrumento. Isto é, como forma de aumentar nossas capacidades, de ir além do nosso corpo e da nossa mente animal.
Neste ponto, talvez seja interessante falar sobre o próprio conceito de instrumento: uma extensão do corpo que permite fazer algo impossível pela nossa constituição física. A faca, por exemplo, surge da nossa incapacidade de cortar.
Descobrir para que a arte serve envolve pensar quais incapacidades – mais mentais do que físicas – ela nos ajuda a superar.
Seguindo este contexto, vamos entender mais sobre as funções da arte por Armstrong e de Botton.
1 – Rememoração
Somos massacrados por um incontável número de informações diariamente, temos menos tempo, muitas coisas a fazer, diversas opções e decisões a tomar. Não tem outra saída, nosso raciocínio é de escolher e descartar a todo instante. Neste ponto, a arte tem o papel de perpetuar momentos importantes.
Diante da nossa limitação natural, é comum esquecer certas coisas, momentos, pessoas, detalhes… Não somos bons em recordar, dadas às falhas da nossa memória, não é surpreendente o nosso medo de esquecer. Basta pegar um dos álbuns da família e as fotografias estarão lá, com a captura de momentos para nos ajudar a reviver essas lembranças com mais clareza e intensidade.
A escrita é a principal forma de reagir aos efeitos do esquecimento; a segunda é a arte. Um bom exemplo do que é a rememoração, é quando tiramos fotos para não nos esquecermos de um momento especial ou quando detalhamos acontecimentos nas páginas de um diário.
Já quando falamos de arte, podemos notar a rememoração em obras que retratam um determinado momento, capturando detalhadamente a sua essência, como se fosse uma forma de nunca esquecer o que aquela cena representou. Segundo Renault, a rememoração na arte nos ajuda a conservar as coisas que amamos depois que elas partiram.
Não quero nunca esquecer como você estava esta noite. | Jean-Baptiste Regnault, A origem da pintura: Dibutade desenhando o retrato de um pastor, 1786.
A obra acima representa um casal muito apaixonado que precisava se separar. A mulher, então, desenhou o perfil de seu amado na lateral de uma tumba usando um pedaço de carvão.
A forma com que Regnault apresenta essa cena é muito comovente. A escolha das cores, como os tons suaves do crepúsculo, sugere o último dia que passam juntos. Enquanto o homem segura a flauta rústica – símbolo tradicional do pastor – à esquerda um cachorro observa a mulher, sugerindo fidelidade e devoção.
Os detalhes que ela escolheu retratar, indica que ela valorizou os detalhes de seu amado que ela teme esquecer, como o formato de seu nariz, o cabelo cacheado, a curva de sua nuca e os ombros erguidos – minúcias que a ajudarão recordar de seu amado enquanto ele estiver cuidando de seus rebanhos em um vale distante.
Ainda falando sobre rememoração, uma obra de arte, que pode ser uma foto de família, alcança seu objetivo quando ressalta os elementos valiosos, mas difíceis de captar e, também que, a boa obra artística capta o núcleo da significação, enquanto a ruim – ainda que certamente nos recorde algo – deixa escapar a essência, tornando-se apenas uma lembrança vazia.
2 – Esperança
A segunda função da arte é sobre a arte alegre agradável e graciosa, como podemos observar em campos primaveris, sombras de árvores do calor do verão, paisagens bucólicas, crianças sorridentes, apesar de ser um tipo de arte que divide opiniões.
Apreciamos a pintura graciosa por que ela representa atração especial por algo que não temos ou que não podemos ter.
De modo generalista, os autores supõem que o gracioso desencadeia problemas, visto que esse tipo de arte parece sugerir que basta enfeitar o apartamento com flores para tornar a vida mais agradável.
Eles ainda afirmam que, se perguntássemos à pintura graciosa o que há de errado com o mundo, é como se ela respondesse “faltam jardins aquáticos japoneses”, o que demonstra ignorância de todos os problemas mais urgentes que a humanidade enfrenta — basicamente morais, mas também políticos e sexuais.
Esse tipo de pintura desperta o receio de nos deixar entorpecidos, diminuindo nosso senso crítico e a atenção às injustiças à nossa volta. O que preocupa estarmos alegres e contentes com excessiva facilidade, com uma visão otimista da vida e do mundo, sem justificativa. E, ainda assim, mesmo estando conscientes de que o mundo não é cor-de-rosa e de termos conhecimento acerca dos problemas e injustiças do mundo, há um sentimento de fraqueza e impotência diante deles.
Os autores ainda citam que os problemas nos são apresentados com tanta frequência, que precisamos de instrumentos para preservar o ânimo. Talvez se o mundo fosse um lugar melhor, houvesse menos sensibilização e necessidade por obras graciosas.
Na compreensão moderna, a arte criada a partir do que se considera ideal, traz uma carga pejorativa, pois o artista elimina tudo que há de incômodo, mantendo apenas os aspectos positivos e agradáveis.
O que se teme é que essa atração e apreciação pelo gracioso soe como uma injustiça para com a realidade.
Antoine Watteau, Encontro de caça, c.1717-1718.
Na obra de Watteau, podemos observar o campo como um local de lazer, bem-estar e elegância. A crítica a ela, se dá pela ausência da realidade que sustenta aquela visão. Os autores, então, indagam sobre a representação da criadagem responsável por servir o vinho e frutas e o campesinato que garante a renda daquela classe ociosa. O temor é que a graciosidade da obra, torne o público cego da realidade que sustenta aquela cena.
Para gerar um antídoto para esse efeito gracioso, considera-se treinar o olhar e nos tornarmos mais conscientes da realidade da época em que a obra foi criada, e da intenção do artista para com a obra. Assim, conseguimos admirar uma imagem ideal sem vê-la como uma falsa representação das coisas como, em geral, são.
3 – Sofrimento
Como terceira função, a arte promove o encontro e a vivência com o sofrimento, ampliando sensações agradáveis, nos ajudando a enfrentar situações difíceis com dignidade, aceitando o sofrimento como natural na narrativa de uma vida.
É comum que, em diálogos cotidianos, quando relatamos uma situação de sofrimento a alguém, a pessoa procure confortar-nos propondo uma solução alegre. Na psicologia, historicamente, o sofrimento é algo incompreendido e negado, quando deveria ser apenas um sentimento que é natural de nossas vidas.
O sofrimento é algo que está presente em todos os lugares, em toda parte e, por isso, torna-se algo grandioso e de fácil identificação.
Richard Serra, Fernando Pessoa, 2007-8
Na obra João Pessoa, Richard Serra afirma que “muitas vezes estamos intensamente solitários em nosso sofrimento. Em um mundo otimista que adora o sucesso, nossas misérias parecem vergonhosas. Não estamos apenas tristes, estamos tristes por sermos os únicos que parecem estar assim”. Assim, ele sugere que devemos aceitar e ter um relacionamento com a tristeza ao invés de negá-la ou fugir dela.
Nan Goldin, Sioban no meu espelho, Berlim, 1992.
A obra de Nan Goldin aborda a homossexualidade de uma forma poética. Mesmo não ficando claro à primeira vista, a foto ilustra uma pessoa jovem, uma lésbica, observando-se minuciosamente ao espelho. A ênfase da obra está no modo como ela gostaria de ser vista: elegante e vistosa, uma versão refinada de si mesma.
4 – Reequilíbrio
Num mundo cada vez mais distraído e cheio de estímulos, não é de espantar que precisemos nos centrar. São raros aqueles que tem pleno equilíbrio psicológico. As relações e rotinas de trabalho, frustrações e outras situações corriqueiras da vida, fazem com que as emoções oscilem e até mesmo inclinem mais para um lado do que para o outro, como sugerem os autores.
Eles ainda afirmam que a arte nos põe em contato com doses concentradas de inclinações que nos faltam, devolvendo nosso equilíbrio. A ideia de que a arte nos ajuda a nos reequilibrar emocionalmente reacende o velho debate sobre as grandes diferenças de gosto estético das pessoas.
Queremos que as obras compensem algo em nós, por que quando a vida se torna mais complexa e artificial, quando não se vive tanto ao ar livre, aumenta o desejo por uma simplicidade natural que compense.
“É de se esperar que a nação que mais avançou para o não natural seja a mais tocada pela arte naïf. Essa nação é a França” – Friedrich Schiller (poeta, dramaturgo e filósofo alemão).
A obra de Botton e Armstrong ainda ressalta que isso é um “sinal de que o mundo desenvolvido contemporâneo anda numa extraordinária correria e se sente saciado em termos materiais”.
No cristianismo, destaca-se o Fra Angelico, um pintor italiano, beatificado pela Igreja Católica, considerado o artista mais importante da península na época do Gótico Tardio ao início do Renascimento. Ele utilizou os aspectos morais da arte para manter as pessoas na linha, através de obras como a pintura “Os tormentos do Inferno”, onde evocava esteticamente um inferno povoado de demônios devoradores de carne. O intuito era causar espanto e angústia, através de um caráter assustador de suas representações do inferno.
Na atualidade, o inferno pode ser representado por outro tipo de obra, como a fotografia de Eve Arnold, “Divórcio em Moscou”, de 1966.
Eve Arnold, Divórcio em Moscou, 1966.
A fotografia representa o inferno na forma cotidiana. A obra revela que apesar de sabermos quais são todos os preceitos sobre o casamento, tal como amar e ser um bom esposo e esposa, isso perde todo o sentido se repetidos de forma mecânica. O papel do artista, neste caso, é encontrar novos meios de nos forçar a abrir os olhos para certas situações e nos ajudar a encontrar maneiras para uma vida boa e equilibrada.
“A arte pode nos surpreender em muitos aspectos, através de um lembrete profundos e oportunos”.
5 – Compreensão de si
Na quinta função, a arte torna-se uma forma de compreensão de si mesmo. Os autores iniciam essa abordagem afirmando que não somos transparentes com nós mesmos, que não nos conhecemos o suficiente até nos depararmos com uma obra que provoque esse encontro de forma que possamos nos conhecer com mais clareza.
Joseph Cornell, Sem título (princesa Médici), 1948.
A obra de Cornell tem uma história com significado interessante. Ao olhar para aquele objeto, é notável assimilá-lo com algo pessoal. O autor, então, indagou: “por que essa estranha sensação de reconhecimento?”.
Além da referência visual à Bia, a filha do Duque de Florença, Cosme I dos Médicis, que morreu aos 6 anos, a proposta do artista não é para conhecermos uma princesa interior.
“Sua caixa nos apresenta um modelo para a possível coordenação entre os vários elementos de uma identidade”.
Quando uma obra gera identificação, significa que os valores que sentimos diante dela estão mais claros nela, do que costumam ser em nossa mente. Trata-se da percepção e autoconhecimento, entre outros aspectos dificeis e verbalizar, mesmo sendo carregada de significado.
A arte tem a capacidade de nos ajudar a entender nós mesmos e, então, transmitir aos outros o que somos. A decoração de interiores é algo surpreendente quando se trata de comunicação não verbal. A escolha de objetos, tons, materiais, texturas se tornam um composto que comunica a nossa identidade para quem visita a nossa casa.
6 – Crescimento
A nossa relação com a arte é repleta de sentimentos curiosos, que às vezes gera empatia e identificação, mas também pode provocar medo e tédio.
Ao visitar o Museu Casa dos Contos em Ouro Preto (Minas Gerais), turistas relatam uma sensação estranha, triste e angustiante que decorre de tudo de ruim que aconteceu naqueles ambientes: condições desumanas de sobrevivência, a tortura, entre outros acontecimentos que fazem o ambiente ser repleto de medo e tristeza.
A aversão por algum gênero artístico pode nascer de experiências traumáticas. O problemacom esses momentos negativos, sobretudo na infância, é que eles podem causar danos psicológicos em um grau quase irreversível e no fundo, de forma injusta, pois costumam desencadear em nós uma série de reações defensivas.
Essa postura defensiva torna-se prejudicial, pois é como se tudo se tornasse ameaçador ou desagradável, nos incapacitando de sentir qualquer simpatia ou interesse por religião, futebol, África etc.
Essa defesa causa uma espécie de empobrecimento, uma vez que deixamos de promover o nosso crescimento se continuarmos generalizando questões mais específicas.
“Ficamos debilitados quando vemos ameaças por todos os lados, quando as ansiedades explosivas do passado nos tornam agressivos em relação a qualquer coisa no presente que nos faça relembrá-las de maneira semiconsciente”.
O envolvimento com a arte é útil por que nos concede tempo e privacidade para aprendermos a lidar de forma mais estratégica com nossas emoções e bloqueios psicológicos.
O que nos ajudaria a quebrar essa barreira é estar atento à realidade da arte em questão de se pôr mais a vontade com a mentalidade aparentemente estranha das pessoas que criaram algumas das obras mais reverenciadas do mundo e tentar encontrar alguma relação entre a mentalidade do artista e a nossa. Dessa forma, a arte oferece lições de crescimento psicológico.
“A arte que começa nos parecendo estranhas é valiosa por que nos apresenta ideias e atitudes que dificilmente encontraríamos em nosso ambiente costumeiro e que nos são necessários para termos pleno envolvimento com a nossa humanidade. (…) É quando encontramos pontos de contato com o desconhecido que somos capazes de crescer”.
7 – Apreciação
Ao apreciar algo, pode-se dizer que é o mesmo que contemplar com os olhos. Não significa, necessariamente, gostar do que se está apreciando, mas dedicar um tempo para compreender o que aquele objeto representa para si e, também, para o mundo.
Segundo Botton e Armstrong, as causas de nossas falhas e infelicidade provém de considerarmos difícil perceber o que está ao nosso redor. Sofremos pelo motivo de não notarmos o valor do que está ali, bem diante de nós e suspiramos, muitas vezes injustamente, ao desejar algo que não temos.
Em parte, isso ocorre devido a nos acostumamos às coisas: somos especialistas na arte de habituar-se. Na obra, Botton e Armstrong afirmam que isso também ocorre em nosso cotidiano, quando deixamos de apreciar o céu, aos amigos, aos formatos de nossa própria casa, às expressões de nossos familiares etc. Ou seja, tudo aquilo que banalizamos por, talvez acharmos que já vimos com bastante clareza, um preconceito que a arte desnuda com orgulho, ao nos mostrar o que provavelmente deixamos passar.
Jasper Johns, Bronze Pintado, 1960.
Você consegue lembrar Dos rótulos de cerveja em 1960 o artista Jasper Johns fugiu duas peças em bronze, em toneladas o nome da marca (Ballantine Ale) e as pôs juntas sobre pequena base.
As características daquele tipo de arte feita com elementos comuns, porém poucos percebidos em nosso dia a dia., causa estranheza, nos levando a apreciá-la como se nunca tivéssemos visto uma lata antes.
Com essa obra, Johns nos ensinou a olhar para o mundo com um olhar mais atento e generoso, nos convidando a aplicar esse conceito em outras situações, como o entardecer da primaera, a alegria dos nossos filhos, os edifícios que passamos diariamente, as expressões dos nossos cônjuges, entre outros.
“Talvez não prestemos tanta atenção porque achamos que já os vimos com bastante clareza – preconceito que a arte contradiz com orgulho ao pôr em primeiro plano tudo o que provavelmente deixamos passar”.
A obra de Botton e Armstrong sugere que a arte tem sete funções, mas historicamente, a arte tem proposta relativa para cada indivíduo. Alguns sentirão tudo ao mesmo tempo ao se deparar com uma obra de arte, podendo evocar as 7 funções citadas em Arte Como Terapia. Outros, no entanto, podem não sentir nada.
E você, o que sente ao apreciar obras de arte?